INSÔNIA: OS MUITOS FRACASSOS NA SUA FARMACOTERAPIA
"Não tenho medo do sono eterno, mas da insônia eterna!" Mário Quintana"Percebendo que um aluno dormia durante a aula, falei mais baixo!" M. Bandeira (crônicas)
Márcio amaral
Quem pode duvidar dos enormes avanços obtidos na farmacoterapia dos transtornos psiquiátricos em geral, desde que Delay e Deniker apresentaram seus primeiros estudos sobre os efeitos benéficos da clorpromazina nas esquizofrenias e agitações psicomotoras? Para quase todas as condições psiquiátricas, foi desenvolvida pelo menos uma substância que modificou sensívelmente sua sintomatologia e evolução, gerando prognósticos mais alentadores. Assim foi para com as depressões, os estados maníacos (mas também na sua profilaxia, junto aos paciente bipolares); os transtornos de ansiedade em geral e até mesmo para as esquizofrenias, nas quais, se não conseguimos impedir sua evolução para alguma deterioração, pelo menos retardamos bastante esse processo*.
Diga-se de passagem, a maior parte dos fracassos, nesses casos, não se deve à limitação do arsenal psicofarmacológico, mas ao fato dessas condições atingirem a "estrutura" (mente, mas também o cérebro, embora não necessariamente de maneira causal) onde, por definição, ocorrem os nossos julgamentos. Isso parece especialmente verdadeiro para os transtornos dos impulsos em geral e para alguns dos assim classificados transtornos da personalidade. Estou convencido de que muitos mais desses pacientes poderiam ser beneficiados, caso conseguissem fazer uso continuado de algumas das substâncias disponíveis.
Já em relação à insônia, essa disposição é exatamente contrária: todas as pessoas que dela sofrem gostariam de dispor de um medicamento efetivo, desde que não decorressem prejuízos pelo seu uso. Por que, então, as promessas de novas drogas para insônia, por mais de 100 anos, têm frustrado seus utilizadores e os profissionais envolvidos? Todos os medicamentos indutores do sono são: capazes de provocar tolerância, dependência e, em alguns casos síndrome de abstinência; todos interferem na arquitetura do sono e, apesar de muitos pesquisadores não verem nisso "um problema maior", estou convencido de que aquela sequência de ritmos EEGráficos, com suas durações razoavelmente padronizadas, não se fez meramente por capricho ou acaso na natureza. Há que respeitar essa "inteligência" que selecionou, por milhões de anos, tantos ciclos, ritmos e comportamentos. Todos os animais precisam dormir e seguir a sequência de padrões eletrofisiológicos. A situação mais dramática é a dos cetáceos que são obrigados a manter desperto um hemisfério, enquanto o outro adormece.
Por tudo isso, e sem querer fazer jogo de palavras, digo que o tratamento específico e farmacológico da insônia é uma espécie de "buraco negro" no qual me recuso a entrar. Melhor é discutir a higiene do sono e promover alguma educação de maneira, pelo menos, a evitar certos comportamentos que podem estar dificultando o adormecer e/ou a continuidade do sono. O uso de substâncias como os BDZ, Zolpiden e outras deve se limitar a curtos períodos, embora seja típico desses pacientes a insistência por mais e mais medicamentos. Toda a minha esperança, nesses casos, é a de que a insônia seja, como na maioria das vezes é, consequência de alguma outra condição, cujo tratamento resultará na sua solução.
Sem a esperança de resolver o problema e admitindo que a pergunta vai continuar no ar, vou fazer pelo menos mais algumas: existe alguma forma de insônia entre outros mamíferos e aves? E entre os indígenas vivendo nas suas condições originais, são verificadas insônias crônicas? Tenho a impressão de que não, e isso pode gerar algumas consequências. Por alguma razão, os seres humanos começaram a "brigar com a sono" e estou convencido de que qualquer "esforço" para dormir tende a resultar no seu oposto. Adormecer é uma consequência natural do estado de recolhimento e repouso. Deixando de lado condições extremas---como a muito mal denominada Insônia Familiar Fatal, e condições nas quais a insônia é mais uma manifestação da síndrome, com em algumas depressões---as insônias crônicas parecem se associar a um estranho medo de dormir que repousa em camadas não controladas pela consciência. Radicalizando: a insônia crônica decorreria, na quase totalidade dos casos, do medo da perda de controle que o adormecer implica; sobre o meio e sobre os próprios conteúdos da mente.
Recorramos a 3 metáforas aplicadas à conciliação do sono, criadas e aplicadas pelos povos. A primeira está na palavra grifada. Nosso povo teve a sabedoria (e o bom gosto) de associar o adormecer ao "parar de brigar" (conciliação). A segunda vem da Grécia, onde o adormecer foi associado ao entregar-se, ou cair, nos braços de Morfeu. Digam o que disserem, mas em qualquer língua, esse cair ou se entregar será sempre associado a "parar de brigar". A terceira, seria o método de indução do sono que nos foi sugerido desde a infância, mas que parece não funcionar muito: contar carneirinhos. O simples contar, em princípio, implicaria atrapalhar o processo, mas pode haver mais coisas ali. Os carneirinhos são os animais mais associados à submissão e ao não-conflito em geral. Eu traduziria assim: tente encontrar o carneirinho dentro de você e adormecerá. Além disso, todos sabem que, em uma situação de ódio, o que primeiro desaparece é o sono.
De minha parte, digo que não brigo---exceto durante consultas e dirigindo automóvel---com o sono, nem com a insônia. Se tenho dificuldades eventuais a respeito, penso que meu organismo está me comunicando alguma coisa: essa insônia há de ser produtiva; não para ficar forçando mais e mais o estado de alerta, mas para me entregar e aproveitar o estado de semi-vigília, onde há uma riqueza insuspeitada. Pelo menos dois dos pensadores que mais aprecio: Montaigne e Leibniz, tiravam grande proveito desse estado. O primeiro pedia que o acordassem na madrugada para melhor saborear esse estado e o segundo, ao adormecer, deixava todo o material para escrita à mão, de maneira a registrar as idéias que lhe ocorreriam.
Diante dessas palavras, é natural que muitos julguem não estar eu dando o valor e o peso que o problema merece na clínica. Se surgisse alguma substância segura e efetiva, eu seria um dos que a ela recorreriam (para os casos mais difíceis, é claro). Não trabalho mais com essa hipótese. Considerando que as drogas utilizadas, com uma frequência alarmante tornam-se, elas mesmas, o maior de todos os problemas, a pergunta que costumo fazer na clínica é: "Por que é tão insuportável ficar algumas horas sem adormecer durante a noite?".
*No terreno da intervenção farmacológica nas demências---embora não se as possa classificar entre os Transtornos Psiquiátricos propriamente ditos--- o que mais chama a atenção é o descompasso entre as expectativas levantadas a cada nova droga apresentada ao mercado, e sua efetividade, passados alguns anos. É bem provável que o afã por encontrar novas drogas implique atropelo. Há tanto conhecimento básico a ser reunido a respeito, antes que brotem substâncias efetivas. A nós, os clínicos, resta resistir às manipulações. Para isso, tenho um princípio: conduzo-me como quem dirige em uma estrada de terra. Como não posso estar na frente, pois não sou muito apressado, mantenho uma distância suficiente para que a poeira baixe, tentando fazer "como o velho marinheiro...".
Márcio amaral
Quem pode duvidar dos enormes avanços obtidos na farmacoterapia dos transtornos psiquiátricos em geral, desde que Delay e Deniker apresentaram seus primeiros estudos sobre os efeitos benéficos da clorpromazina nas esquizofrenias e agitações psicomotoras? Para quase todas as condições psiquiátricas, foi desenvolvida pelo menos uma substância que modificou sensívelmente sua sintomatologia e evolução, gerando prognósticos mais alentadores. Assim foi para com as depressões, os estados maníacos (mas também na sua profilaxia, junto aos paciente bipolares); os transtornos de ansiedade em geral e até mesmo para as esquizofrenias, nas quais, se não conseguimos impedir sua evolução para alguma deterioração, pelo menos retardamos bastante esse processo*.
Diga-se de passagem, a maior parte dos fracassos, nesses casos, não se deve à limitação do arsenal psicofarmacológico, mas ao fato dessas condições atingirem a "estrutura" (mente, mas também o cérebro, embora não necessariamente de maneira causal) onde, por definição, ocorrem os nossos julgamentos. Isso parece especialmente verdadeiro para os transtornos dos impulsos em geral e para alguns dos assim classificados transtornos da personalidade. Estou convencido de que muitos mais desses pacientes poderiam ser beneficiados, caso conseguissem fazer uso continuado de algumas das substâncias disponíveis.
Já em relação à insônia, essa disposição é exatamente contrária: todas as pessoas que dela sofrem gostariam de dispor de um medicamento efetivo, desde que não decorressem prejuízos pelo seu uso. Por que, então, as promessas de novas drogas para insônia, por mais de 100 anos, têm frustrado seus utilizadores e os profissionais envolvidos? Todos os medicamentos indutores do sono são: capazes de provocar tolerância, dependência e, em alguns casos síndrome de abstinência; todos interferem na arquitetura do sono e, apesar de muitos pesquisadores não verem nisso "um problema maior", estou convencido de que aquela sequência de ritmos EEGráficos, com suas durações razoavelmente padronizadas, não se fez meramente por capricho ou acaso na natureza. Há que respeitar essa "inteligência" que selecionou, por milhões de anos, tantos ciclos, ritmos e comportamentos. Todos os animais precisam dormir e seguir a sequência de padrões eletrofisiológicos. A situação mais dramática é a dos cetáceos que são obrigados a manter desperto um hemisfério, enquanto o outro adormece.
Por tudo isso, e sem querer fazer jogo de palavras, digo que o tratamento específico e farmacológico da insônia é uma espécie de "buraco negro" no qual me recuso a entrar. Melhor é discutir a higiene do sono e promover alguma educação de maneira, pelo menos, a evitar certos comportamentos que podem estar dificultando o adormecer e/ou a continuidade do sono. O uso de substâncias como os BDZ, Zolpiden e outras deve se limitar a curtos períodos, embora seja típico desses pacientes a insistência por mais e mais medicamentos. Toda a minha esperança, nesses casos, é a de que a insônia seja, como na maioria das vezes é, consequência de alguma outra condição, cujo tratamento resultará na sua solução.
Sem a esperança de resolver o problema e admitindo que a pergunta vai continuar no ar, vou fazer pelo menos mais algumas: existe alguma forma de insônia entre outros mamíferos e aves? E entre os indígenas vivendo nas suas condições originais, são verificadas insônias crônicas? Tenho a impressão de que não, e isso pode gerar algumas consequências. Por alguma razão, os seres humanos começaram a "brigar com a sono" e estou convencido de que qualquer "esforço" para dormir tende a resultar no seu oposto. Adormecer é uma consequência natural do estado de recolhimento e repouso. Deixando de lado condições extremas---como a muito mal denominada Insônia Familiar Fatal, e condições nas quais a insônia é mais uma manifestação da síndrome, com em algumas depressões---as insônias crônicas parecem se associar a um estranho medo de dormir que repousa em camadas não controladas pela consciência. Radicalizando: a insônia crônica decorreria, na quase totalidade dos casos, do medo da perda de controle que o adormecer implica; sobre o meio e sobre os próprios conteúdos da mente.
Recorramos a 3 metáforas aplicadas à conciliação do sono, criadas e aplicadas pelos povos. A primeira está na palavra grifada. Nosso povo teve a sabedoria (e o bom gosto) de associar o adormecer ao "parar de brigar" (conciliação). A segunda vem da Grécia, onde o adormecer foi associado ao entregar-se, ou cair, nos braços de Morfeu. Digam o que disserem, mas em qualquer língua, esse cair ou se entregar será sempre associado a "parar de brigar". A terceira, seria o método de indução do sono que nos foi sugerido desde a infância, mas que parece não funcionar muito: contar carneirinhos. O simples contar, em princípio, implicaria atrapalhar o processo, mas pode haver mais coisas ali. Os carneirinhos são os animais mais associados à submissão e ao não-conflito em geral. Eu traduziria assim: tente encontrar o carneirinho dentro de você e adormecerá. Além disso, todos sabem que, em uma situação de ódio, o que primeiro desaparece é o sono.
De minha parte, digo que não brigo---exceto durante consultas e dirigindo automóvel---com o sono, nem com a insônia. Se tenho dificuldades eventuais a respeito, penso que meu organismo está me comunicando alguma coisa: essa insônia há de ser produtiva; não para ficar forçando mais e mais o estado de alerta, mas para me entregar e aproveitar o estado de semi-vigília, onde há uma riqueza insuspeitada. Pelo menos dois dos pensadores que mais aprecio: Montaigne e Leibniz, tiravam grande proveito desse estado. O primeiro pedia que o acordassem na madrugada para melhor saborear esse estado e o segundo, ao adormecer, deixava todo o material para escrita à mão, de maneira a registrar as idéias que lhe ocorreriam.
Diante dessas palavras, é natural que muitos julguem não estar eu dando o valor e o peso que o problema merece na clínica. Se surgisse alguma substância segura e efetiva, eu seria um dos que a ela recorreriam (para os casos mais difíceis, é claro). Não trabalho mais com essa hipótese. Considerando que as drogas utilizadas, com uma frequência alarmante tornam-se, elas mesmas, o maior de todos os problemas, a pergunta que costumo fazer na clínica é: "Por que é tão insuportável ficar algumas horas sem adormecer durante a noite?".
*No terreno da intervenção farmacológica nas demências---embora não se as possa classificar entre os Transtornos Psiquiátricos propriamente ditos--- o que mais chama a atenção é o descompasso entre as expectativas levantadas a cada nova droga apresentada ao mercado, e sua efetividade, passados alguns anos. É bem provável que o afã por encontrar novas drogas implique atropelo. Há tanto conhecimento básico a ser reunido a respeito, antes que brotem substâncias efetivas. A nós, os clínicos, resta resistir às manipulações. Para isso, tenho um princípio: conduzo-me como quem dirige em uma estrada de terra. Como não posso estar na frente, pois não sou muito apressado, mantenho uma distância suficiente para que a poeira baixe, tentando fazer "como o velho marinheiro...".
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