sábado, 19 de maio de 2012


INSÔNIA: OS MUITOS FRACASSOS NA SUA FARMACOTERAPIA

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"Não tenho medo do sono eterno, mas da insônia eterna!" Mário Quintana"Percebendo que um aluno dormia durante a aula, falei mais baixo!" M. Bandeira (crônicas)
Márcio amaral
Quem pode duvidar dos enormes avanços obtidos na farmacoterapia dos transtornos psiquiátricos em geral, desde que Delay e Deniker apresentaram seus primeiros estudos sobre os efeitos benéficos da clorpromazina nas esquizofrenias e agitações psicomotoras? Para quase todas as condições psiquiátricas, foi desenvolvida pelo menos uma substância que modificou sensívelmente sua sintomatologia e evolução, gerando prognósticos mais alentadores. Assim foi para com as depressões, os estados maníacos (mas também na sua profilaxia, junto aos paciente bipolares); os transtornos de ansiedade em geral e até mesmo para as esquizofrenias, nas quais, se não conseguimos impedir sua evolução para alguma deterioração, pelo menos retardamos bastante esse processo*.
Diga-se de passagem, a maior parte dos fracassos, nesses casos, não se deve à limitação do arsenal psicofarmacológico, mas ao fato dessas condições atingirem a "estrutura" (mente, mas também o cérebro, embora não necessariamente de maneira causal) onde, por definição, ocorrem os nossos julgamentos. Isso parece especialmente verdadeiro para os transtornos dos impulsos em geral e para alguns dos assim classificados transtornos da personalidade. Estou convencido de que muitos mais desses pacientes poderiam ser beneficiados, caso conseguissem fazer uso continuado de algumas das substâncias disponíveis.
Já em relação à insônia, essa disposição é exatamente contrária: todas as pessoas que dela sofrem gostariam de dispor de um medicamento efetivo, desde que não decorressem prejuízos pelo seu uso. Por que, então, as promessas de novas drogas para insônia, por mais de 100 anos, têm frustrado seus utilizadores e os profissionais envolvidos? Todos os medicamentos indutores do sono são: capazes de provocar tolerância, dependência e, em alguns casos síndrome de abstinência; todos interferem na arquitetura do sono e, apesar de muitos pesquisadores não verem nisso "um problema maior", estou convencido de que aquela sequência de ritmos EEGráficos, com suas durações razoavelmente padronizadas, não se fez meramente por capricho ou acaso na natureza. Há que respeitar essa "inteligência" que selecionou, por milhões de anos, tantos ciclos, ritmos e comportamentos. Todos os animais precisam dormir e seguir a sequência de padrões eletrofisiológicos. A situação mais dramática é a dos cetáceos que são obrigados a manter desperto um hemisfério, enquanto o outro adormece.
Por tudo isso, e sem querer fazer jogo de palavras, digo que o tratamento específico e farmacológico da insônia é uma espécie de "buraco negro" no qual me recuso a entrar. Melhor é discutir a higiene do sono e promover alguma educação de maneira, pelo menos, a evitar certos comportamentos que podem estar dificultando o adormecer e/ou a continuidade do sono. O uso de substâncias como os BDZ, Zolpiden e outras deve se limitar a curtos períodos, embora seja típico desses pacientes a insistência por mais e mais medicamentos. Toda a minha esperança, nesses casos, é a de que a insônia seja, como na maioria das vezes é, consequência de alguma outra condição, cujo tratamento resultará na sua solução.
Sem a esperança de resolver o problema e admitindo que a pergunta vai continuar no ar, vou fazer pelo menos mais algumas: existe alguma forma de insônia entre outros mamíferos e aves? E entre os indígenas vivendo nas suas condições originais, são verificadas insônias crônicas? Tenho a impressão de que não, e isso pode gerar algumas consequências. Por alguma razão, os seres humanos começaram a "brigar com a sono" e estou convencido de que qualquer "esforço" para dormir tende a resultar no seu oposto. Adormecer é uma consequência natural do estado de recolhimento e repouso. Deixando de lado condições extremas---como a muito mal denominada Insônia Familiar Fatal, e condições nas quais a insônia é mais uma manifestação da síndrome, com em algumas depressões---as insônias crônicas parecem se associar a um estranho medo de dormir que repousa em camadas não controladas pela consciência. Radicalizando: a insônia crônica decorreria, na quase totalidade dos casos, do medo da perda de controle que o adormecer implica; sobre o meio e sobre os próprios conteúdos da mente.
Recorramos a 3 metáforas aplicadas à conciliação do sono, criadas e aplicadas pelos povos. A primeira está na palavra grifada. Nosso povo teve a sabedoria (e o bom gosto) de associar o adormecer ao "parar de brigar" (conciliação). A segunda vem da Grécia, onde o adormecer foi associado ao entregar-se, ou cair, nos braços de Morfeu. Digam o que disserem, mas em qualquer língua, esse cair ou se entregar será sempre associado a "parar de brigar". A terceira, seria o método de indução do sono que nos foi sugerido desde a infância, mas que parece não funcionar muito: contar carneirinhos. O simples contar, em princípio, implicaria atrapalhar o processo, mas pode haver mais coisas ali. Os carneirinhos são os animais mais associados à submissão e ao não-conflito em geral. Eu traduziria assim: tente encontrar o carneirinho dentro de você e adormecerá. Além disso, todos sabem que, em uma situação de ódio, o que primeiro desaparece é o sono.
De minha parte, digo que não brigo---exceto durante consultas e dirigindo automóvel---com o sono, nem com a insônia. Se tenho dificuldades eventuais a respeito, penso que meu organismo está me comunicando alguma coisa: essa insônia há de ser produtiva; não para ficar forçando mais e mais o estado de alerta, mas para me entregar e aproveitar o estado de semi-vigília, onde há uma riqueza insuspeitada. Pelo menos dois dos pensadores que mais aprecio: Montaigne e Leibniz, tiravam grande proveito desse estado. O primeiro pedia que o acordassem na madrugada para melhor saborear esse estado e o segundo, ao adormecer, deixava todo o material para escrita à mão, de maneira a registrar as idéias que lhe ocorreriam.
Diante dessas palavras, é natural que muitos julguem não estar eu dando o valor e o peso que o problema merece na clínica. Se surgisse alguma substância segura e efetiva, eu seria um dos que a ela recorreriam (para os casos mais difíceis, é claro). Não trabalho mais com essa hipótese. Considerando que as drogas utilizadas, com uma frequência alarmante tornam-se, elas mesmas, o maior de todos os problemas, a pergunta que costumo fazer na clínica é: "Por que é tão insuportável ficar algumas horas sem adormecer durante a noite?".
*No terreno da intervenção farmacológica nas demências---embora não se as possa classificar entre os Transtornos Psiquiátricos propriamente ditos--- o que mais chama a atenção é o descompasso entre as expectativas levantadas a cada nova droga apresentada ao mercado, e sua efetividade, passados alguns anos. É bem provável que o afã por encontrar novas drogas implique atropelo. Há tanto conhecimento básico a ser reunido a respeito, antes que brotem substâncias efetivas. A nós, os clínicos, resta resistir às manipulações. Para isso, tenho um princípio: conduzo-me como quem dirige em uma estrada de terra. Como não posso estar na frente, pois não sou muito apressado, mantenho uma distância suficiente para que a poeira baixe, tentando fazer "como o velho marinheiro...".
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    ABEAD: AFIRMAÇÕES NÃO FUNDAMENTADAS E CONCLUSÕES PRECIPITADAS

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Márcio Amaral, vice-diretor IPUB-UFRJ, Prof. Adjunto UFRJ e UFF
Dentre as atitudes esperadas entre as pessoas ligadas à ciência--até porque se tornam como que "cacoetes"--estão o evitar tirar conclusões precipitadas (especialmente de relações de causa e efeito) e o esforço de bem fundamentar suas teses e hipóteses. Sem elas, como vamos nos diferenciar de pregadores religiosos e de políticos? Não as encontramos nas afirmações do presidente da Ass. Bras. de Estudo do Álcool e Drogas (no programa "Roda Viva"-22/8/11-e em seus artigos). É o que vamos tentar demonstrar.
1-"As mães não têm nada a ver com o problema do uso de drogas. A solução está no exercício do papel de pai!".
Acredite se quiser! Apesar de se intitular psicanalista, ele decidiu diminuir o papel das mães. Pensam que isso foi para protegê-las? Para muitas, que tanto sofrem com sentimento de culpa e impotência, essas palavras devem soar como um bálsamo ou uma anestesia. Para nós soa: "Isso é um assunto para homens!". É o que discutiremos mais abaixo.
2-"Os jovens, até os 21 anos, não têm 'cérebro' para decidir quanto à ingesta ou não de álcool."
Há arrogância no achar que nossas afirmações impôem-se por si mesmas, desobrigando-nos da fundamentação. Os legisladores não têm como escapar de alguma arbitrariedade na fixação de idades para a cobrança de responsabilidades, assim como, entre nós, os elaboradores de critérios para seleção de pacientes em pesquisas. Dos clínicos e pesquisadores, porém, é esperada atitude bem diferente. Além disso, um grande número de jovens sofre de um excesso de inibição (ou de "cérebro"). Tantos são aqueles com perfil "Harm Avoidant" (os que evitam riscos de sofrimento, em geral)! Não foram muitas as vezes que os jovens ocuparam a "Praça Tahrir". Ficamos imaginando, aliás, o ex-ditador egípcio a eles se dirigindo: "Vão para casa! Vocês não têm 'cérebro' para estar aqui; não têm condições de freiar os seus impulsos". Para muitos casos, complementaríamos: "Ainda bem!". Não foi por acaso que o pres. da ABEAD, fez um chamamento ao "Paisão-Estado"¹ e que um dos maiores divulgadores dos trabalhos daquela Associação é um grupo religioso denominado "GUIEME".
AS PRECIPITADAS RELAÇÕES DE CAUSA E EFEITO
1- Da constatação de que os usuários crônicos de maconha apresentam um pior desempenho em testes psicológicos (comparados aos não usuários na mesma faixa etária) concluíram ser a maconha a causa específica dessa deficiência. Não levaram em conta a variável relacionada ao tipo de personalidade prévia. Apesar de a primeira hipótese ser bastante razoável, é fácil constatar haver um tipo preferencial de traços de personalidade (com hipobulia marcante) associado à elevação do risco de se tornar usuário crônico. É de bom tom, entre cientistas e em pesquisas, tentar controlar todas as variáveis. Quando impossível, deve-se fazer a ressalva e relativizar as conclusões.
2- Da observação de que o início mais precoce do consumo de álcool se associa a um maior risco para abuso futuro, como que reificaram o dado e fizeram do "adiamento do primeiro gole" seu esforço principal. Vimos uma família sueca, que sempre desfrutou do vinho sem maiores problemas---daquelas que guardam centenas de rolhas em um belo vaso transparente---depois de ser bombardeada com esse discurso, traçar estratégias um tanto tolas para adiar o "primeiro gole" dos filhos. Eles já o tinham tomado havia muito tempo. Como é perigoso esse estímulo à hipocrisia!
3- Da observação (um tanto óbvia) de que o álcool teria sido a primeira droga utilizada em usuários de todas as outras, concluíram que o adiamento ou impedimento do uso inicial do álcool, teria grandes repercussões no uso de outras drogas, como se o álcool fosse uma "entrada de zipper" ou a ventosa de uma "larva": se cortada, a "fixação" das outras substâncias não aconteceria. As advertências para os perigos do uso precoce de álcool são boas e necessárias. Relações simplistas, porém, devem ser evitadas.
Em linguagem que mais se parecia com a de fundamentalistas religiosos, chamou de FILICÍDIO a promoção de festas familiares (de 15 anos) nas quais os jovens provam algum álcool. . Aliás, muitos desses, que se dizem cristãos, esquecem-se de que o primeiro milagre de Cristo teria sido a transformação de água em vinho em uma festa de casamento. Além disso, em um dos momentos mais importantes do culto cristão (a comunhão) é também servido o vinho a todos os que acorrem ao altar.
Onde estão, por falar nisso, os velhos e bons trabalhos das décadas de 1960/70, demonstrando ser a HIPOCRISIA, nas sociedades e nas famílias, o principal fator para o surgimento, mais ou menos tardio, do abuso e dependência do álcool? Por que ninguém mais fala das baixas taxas de abuso entre os judeus e sua associação com o uso ritual inicial nas famílias? E os trabalhos demonstrando ser o problema do alcoolismo muito menor entre os italianos do que entre os franceses, onde há um culto sutil e refinado à hipocrisia? Os mamíferos são, antes de tudo, imitadores. Há muita hipocrisia em beber, saborear, "glamourizar" e, ao mesmo tempo, falar mal do álcool, em geral e para os filhos. A lei deve ser cumprida, mas há uma tolice indisfarçável em dizer a nossos filhos: "A partir de hoje, você pode provar do álcool". Os jovens continuarão a procurar por ele, fora da família.
Antes de ditar regras, há que tentar entender as razões que levam as pessoas ao uso de substâncias. Há que ter até algum respeito para com essas substâncias, usadas desde os primórdios da humanidade em rituais solenes e sagrados: o tabaco (no cachimbo da paz), o vinho (nas festas de Dionísio e cristães), o ópio, as folhas de coca e assim por diante. O grande problema foi, mais uma vez, a avidez pelo lucro: a fabricação massiva e o estímulo ao uso banal e diário. Qual a importância dessa observação? Quem sabe se, no estímulo ao retorno ao uso somente em situações especiais e de congraçamento---isso sim, seria uma verdadeira educação---esteja a chave para evitar abusos. C. Baudelaire, com seu típico lirismo, louvou o quanto o vinho ajudava os mineiros, e outros trabalhadores, a se reencontrarem com sua própria alma, deixada no fundo das minas ou na mecanização do trabalho, a partir da revolução industrial e daquela mesma avidez pelo lucro:
"Pois sinto uma alegria imensa quando desço/Pela goela de quem ao trabalho se entrega/...Hei de acender-te o olhar à esposa embevecida/A teu filho farei voltar as forças e as cores..." ("A Alma do Vinho")
Antes de terminar, voltemos à exclusão das mães na determinação do abuso e abordagem do uso de substâncias. A mensagem é clara: nada de carinho ou aconchego; apenas autoridade e dureza. Quem disse que as mulheres são incapazes de autoridade e até de alguma dureza? Há nisso um discurso machista indisfarçável. Não por acaso, esses grupos têm atacado a grande revolução cultural dos anos 1960/70. Foi essa geração, um tanto "maldita"¹ (dos que eram jovens na época), que promoveu talvez a maior libertação das mulheres, elemento essencial em qualquer revolução cultural e de costumes. Não nos enganemos, sob esse discurso, que faz apologia do "Paisão-Estado" e do papel do pai, há um esforço de fazer das mulheres apenas novas "rainhas do lar"². Fazendo algumas contas, vemos que o pres. da ABEAD era um jovem nos anos 1970. Houve mesmo muitos que ficaram à margem daqueles grandes acontecimentos.
"O sonho acabou/ Quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou/...Foi pesado o sono prá quem não sonhou" (G. Gil, "O Sonho Acabou")¹Chamada, hoje, por sociólogos conservadores, de geração "X", numa alusão a "geração problema". Resta saber: problema para quem? Certamente para aqueles que tentam transformar as sociedades em "rebanhos de ovelhas consumistas".
²Há aqui mais uma alienação. Não sabem que o número de famílias chefiadas por mulheres é, não só enorme, como crescente? Se condicionam o sucesso a esse fator, estão, por antecipação, prevendo o fracasso inevitável. A não ser que o "Paisão Estado" faça todo o papel.
Márcio Amaral, vice-diretor IPUB-UFRJ, Prof. Adjunto UFRJ e UFF
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