sexta-feira, 19 de agosto de 2011
Critérios de Gravidade da Dependência Química
O diagnóstico da dependência química conta atualmente com critérios claros e objetivos (quadro 1). A presença desses critérios confirma esse diagnóstico, qualquer que seja o indivíduo. Portanto, eles têm natureza universal. Por outro lado, podem ser individualizados. Isso acontece porque os critérios de dependência química possuem níveis de gravidade1. Essa importante inovação diagnóstica, introduzida a partir dos anos oitenta, será o mote desse comentário.
Quadro 1: Critérios diagnósticos da dependência química
Compulsão ou perda do controle Um desejo incontrolável de consumir uma substância.
Tolerância A necessidade de doses cada vez maiores da substância para obter o mesmo efeito de antes.
Síndrome de abstinência O surgimento de sintomas de desconforto, físicos e psíquicos, quando o consumo é interrompido ou reduzido.
Evitação da síndrome de abstinência Consiste no uso continuado da substância a fim de evitar o surgimento dos sintomas de abstinência.
Saliência do consumo Utilizar a substância vai se tornando mais importante do que tudo o que o indivíduo valorizava.
Estreitamento do repertório do beber É o consumo dissociado de eventos sociais. Não se utiliza mais a droga por ocasião de eventos. Usa-se pela necessidade de aliviar sintomas de abstinência.
Reinstalação da síndrome de dependência É o retorno do comportamento de consumo e dos sintomas de abstinência após um curto período de retorno do consumo.
Entender a gravidade de um quadro de dependência é personalizar o diagnóstico. É criar subsídios para melhor planejar uma abordagem terapêutica. A gravidade de um quadro de dependência pode ser entendida a partir das repercussões que o consumo de drogas provoca nos diversos campos da vida de um indivíduo (figura 1).
Paralelamente é imprescindível determinar o quanto o indivíduo está motivado para mudar seus hábitos de consumo. A motivação para a mudança ocorre em fases2 (quadro 2). Nenhum indivíduo está preso para sempre a uma condição. Dependentes que não percebem ou negam a gravidade de sua dependência são capazes de perceber tal situação, motivarem-se para a mudança e alcançarem a abstinência. Do mesmo modo, indivíduos altamente motivados podem desistir de seus objetivos com alguma facilidade e retornarem aos padrões habituais de consumo.
FIGURA 1: Os diversos campos de funcionamento de indivíduo. A magnitude do impacto do consumo de uma substância sobre estes determina os níveis de gravidade de um consumo.
Para investigar a gravidade, é preciso uma avaliação detalhada. Um procedimento capaz de identificar os sintomas e em seguida quantifica-los quanto a sua gravidade (quadro 3).
Quadro 2:
Fases da motivação para a mudança
Pré-contemplação O indivíduo não sente a necessidade de mudar. Pensa que seu consumo está sob controle e nega qualquer alternativa de ajuda.
Contemplação Há percepção dos problemas atuais (ou futuros) que o uso de drogas lhe traz. Por outro lado, o indivíduo não se vê sem a substância. É um período marcado pela ambivalência.
Determinação O indivíduo percebe os problemas ocasionados pelo consumo e pede ajuda.
Ação O indivíduo para de consumir drogas.
Manutenção O indivíduo procura estratégias para se manter abstinente.
Recaída É o retorno ao consumo. Pode ser episódica (lapso) ou prolongada. A partir dela, o indivíduo pode regredir a qualquer uma das fases anteriores.
Quadro 3:
Questões essenciais na investigação da gravidade
Histórico do consumo de drogas
Idade de início do consumo
Tipos de drogas que consome ou já consumiu
Freqüência do consumo e a via de administração preferida
Episódios de overdose
Episódios de abstinência
Internações devido à dependência (quantas e quando)
Dia típico de uso
Antecedentes médicos
Complicações do consumo: cirrose, abscessos, problemas pulmonares,...
Estado nutricional do indivíduo
DST/AIDS
Acidentes, internações clínicas, cirurgias
Antecedentes psiquiátricos
Presença de transtornos psiquiátricos antes ou depois do consumo.
Tentativas de suicídio
História forense
Histórico de contravenções
Contato com o sistema judiciário
Situação
Quadro sócio-econômico
Situação dos relacionamentos familiares
Histórico empregatício e a situação atual no emprego
Condições de moradia
Histórico escolar e situação atual
Com a coleta desses dados, além de um perfil adequado acerca da dependência, criam-se subsídios para planejar o manejo terapêutico.
Vejamos o exemplo colocado acima. O histórico do consumo deste indivíduo não demonstra a presença de nenhum critério de dependência. Houve apenas o aparecimento da tolerância, que isolada não apresenta qualquer indício de dependência. Ao longo de sua vida, o consumo de álcool não chegou a atrapalhar seus planos em nenhum campo de sua vida. Nota-se um consumo de baixo risco.
Já este indivíduo evoluiu para um consumo problemático e chegou a dependência. Todos os critérios para dependência química se fazem presentes (quadro 4).
Quadro 4: Identificação dos critérios de dependência
Compulsão ou perda do controle Houve um aumento progressivo do consumo, que invadiu áreas importantes de sua vida, sem que o indivíduo exercesse nenhum controle esse.
Tolerância O aumento da dose consumida diariamente aumentou progressivamente.
Síndrome de abstinência Começou a apresentar tremores matinais a partir do oitavo ano de uso diário.
Evitação da síndrome de abstinência Há presença de uso continuado da substância.
Saliência do consumo O consumo sobressaiu aos seus estudos, seu emprego, seus relacionamentos e vida afetiva.
Estreitamento do repertório do beber Nota-se uma perda de vínculos (trabalho, família, namoro) e a ritualização do consumo (uso diário, desvinculado de eventos sociais ou de controle).
Reinstalação da síndrome de dependência Critério ausente, pois nunca havia estado abstinente até a internação.
Nesse caso, encontramos um indivíduo bastante prejudicado pelo consumo de álcool. Parece possuir pouco apoio da família. Ter o apoio da família significa ajuda direta e aumentam as chances de sucesso no tratamento. A ausência da família piora o prognóstico e aumenta a gravidade do uso.
Ele não tem como se manter e acumulou poucos recursos capazes de lhe prover autonomia. Muito diferente daqueles que apesar do consumo intenso, conseguem empregos precários, informais, onde sua tarefa seja acessória e dispensável. Seu objetivo é apenas conseguir algum dinheiro. Ou ainda, daqueles que ocupam empregos importantes e bebem em horários em que nãom estão trabalhando (almoço, pós-expediente, hora do descanso).
Seu controle sobre o álcool parece ser precário: sofreu prejuízos sociais e físicos graves e ainda assim permaneceu usando. Seria menos grave se houvesse alguém em sua família cuja a autoridade é aceita pelo usuário, que o respeita e reduz o consumo quando solicitado. Ou se o indivíduo, apesar de beber uma garrafa de uísque por dia, o fizesse após o expediente. Tudo isso indica a necessidade de um acompanhamento inicial mais intensivo, talvez até internado.
A análise da gravidade possibilita a identificação de fatores protetores e de manutenção. Possibilita, também, qual o grau de comprometimento do indivíduo com seu tratamento e quais os controles que este é capaz de exercer sobre o seu consumo. Trata-se, assim, de uma ferramenta fundamental para qualquer profissional interessado na questão da dependência.
Referências bibliográficas:
1. Edwards G. O tratamento do alcoolismo. Porto Alegre: ARTMED, 1999.
2. Miller WR & Rollnick S. Motivational Interviewing - preparing people to change addictive behavior. New York: Guilford Press; 1991.
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